sábado, 21 de abril de 2012

As cidades Invisíveis




As cidades e os olhos. 3.

Depois de ter caminhado sete dias através de bosques, quem vai para Bauci não consegue vê-la e no entanto já lá chegou. São as finíssimas andas que se elevam do solo a grande distância umas das outras e se perdem acima das nuvens que sustêm a cidade. Sobe-se com escadotes. No chão os habitantes raramente se mostram: têm já tudo de que precisam lá em cima e preferem não descer. Nada da cidade toca o solo à excepção daquelas pernas compridissimas de fenicóptero em que assenta e, nos dias luminosos, uma sombra perfurada e angulosa que se desenha na folhagem.
Três hipóteses se põem sobre os habitantes de Bauci: que odeiam a Terra; que a respeitam a ponto de evitar qualquer contacto; que a amam tal como ela era antes deles e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de passá-la em resenha, folha a folha, pedra a pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a sua própria ausência.

Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, Ed. Teorema

sábado, 24 de março de 2012

Carnets de notes de "Mémoire d'Hadrien"




"En tout cas, j'étais trop jeune. Il est des livres qu'on ne doit pas oser avant d'avoir dépassé quantente ans. On risque avant cet âge, de méconnaître l'existence des grandes frontières anturelles qui séparent, de personne à personne, de siècle à siècle, l'infinie variété des êtres, ou au contraire d'attacher trop d'importance aux simples divisions administratives, aux bureaux de douanne au guérites des postes armés. Il m'a fallu ces années pour apprendre á calculer exactement les distances entre l'empereur et moi."

"Portrait d'une voix. Si j'ai choisi d'écrire ces Mémoires d'Hadrien à la première personne, c'est pour me passer le plus possible de tout intermédiaire, fût-ce de moi-même. Hadrien pouvait parler de sa vie plus fermement et plus subtilement que moi."

Marguerite Yourcenar, Mémoire d'Hadrien, Ed. Gallimard

terça-feira, 20 de março de 2012

Orlando




Mas Orlando era mulher - Lord Palmerston acabava de o dar como provado. E quando se narra a vida de uma mulher, é ponto assente ser lícito prescindir das exigência de acção, substituindo-a pela do amor. O amor, disse o poeta, é toda a vida da mulher. E se contemplarmos por um instante Orlando sentada a escrever à sua mesa, teremos de confessar que jamais houve mulher mais talhada para tal vocação. Seguramente, uma vez que é mulher, e uma bela mulher, e uma  mulher na flor da idade, há-de abandonar em breve esta ambição de escrever e pensar, e começará a pensar nem que seja num guarda-caça (e contanto que seja num homem, ninguém se opõe a que uma mulher pense). E então escrever-lhe-á um bilhetinho ( e contanto que sejam bilhetinhos, também ninguém se opõe a que uma mulher escreva), marcando encontro para domingo ao entardecer; e chegará a tarde de domingo; e o guarda-caça virá assobiar debaixo da sua janela - sendo tudo isto, sem sombra de dúvida, a própria essência da vida e o único tema possível para a ficção. Orlando terá por certo feito alguma destas coisas. Ai de nós - mil vezes o dizemos, ai de nós: Orlando não fez nenhuma. Teremos de admitir que Orlando era um desses monstros de iniquidade que não amam? Era bondosa para os cães, fiel aos amigos, a generosidade em pessoa para uma dúzia de poetas famintos, tinha uma verdadeira paixão pela poesia. Mas o amor - tal como o definem os romancistas do sexo masculino - e haverá, afinal, quem fale com mais autoridade? - nada tem que ver com a bondade, a fidelidade, a generosidade ou a poesia. O amor é despir a saia e... Mas todos nós sabemos o que é o amor. E Orlando fez isso? A verdade manda-nos dizer que não fez, não senhor. Se por conseguinte o protagonista da nossa biografia não ama nem mata, mas apenas pensa e imagina, podemos concluir que ele ou ela está tão morto como um cadáver, e deixá-lo entregue à sua sorte.

Virginia Woolf, Orlando, Relógio d'Água Ed.

segunda-feira, 12 de março de 2012

dos mais belos poemas de amor



 Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.


Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes, os tristes,
tão fora de esperar bem
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

João Ruiz de Castel-Branco, Cancioneiro Geral 

quinta-feira, 8 de março de 2012

Para ler no dia da mulher



Catarina Eufémia




O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
E eu penso nesse instante em que ficaste exposta
Estavas grávida porém não recuaste
Porque a tua lição é esta: fazer frente

Pois não deste homem por ti
E não ficaste em casa a cozinhar intrigas
Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos

Tinha chegado o tempo
Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro

Porque eras a mulher e não somente a fêmea
Eras a inocência frontal que não recua
Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste
E a busca da justiça continua

Sophia de Mello Breyner Andersen, Dual, Moraes Editores

sábado, 3 de março de 2012

de A Paixão segundo GH



"- - - - - - - - estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro."

Clarice Lispector, A Paixão segundo GH, Editora Nova Fronteira

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A Bohème


"Na substituição do antigo relato pela informação e desta pela sensação reflecte-se a crescente redução da experiência. Todas estas formas, por seu lado, se destacam da narrativa, que é uma das mais antigas formas de comunicação. Para ela não era importante transmitir a pura objectividade do acontecimento, como faz a informação; integra-o na vida do contador de histórias para o passar aos ouvintes com experiência. Por isso, o contador de histórias deixa na experiência as suas marcas, tal como o oleiro deixa as das suas mãos no vaso de barro."

Walter Benjamin, A Modernidade, Assírio&Alvim