terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A Bohème


"Na substituição do antigo relato pela informação e desta pela sensação reflecte-se a crescente redução da experiência. Todas estas formas, por seu lado, se destacam da narrativa, que é uma das mais antigas formas de comunicação. Para ela não era importante transmitir a pura objectividade do acontecimento, como faz a informação; integra-o na vida do contador de histórias para o passar aos ouvintes com experiência. Por isso, o contador de histórias deixa na experiência as suas marcas, tal como o oleiro deixa as das suas mãos no vaso de barro."

Walter Benjamin, A Modernidade, Assírio&Alvim

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Literatura explicativa



O pôr-do-sol em espinho não é o pôr-do sol
nem mesmo o pôr-do-sol é bem o pôr-do-sol
É não morrermos mais é irmos de mãos dadas
com alguém ou com nós mesmos anos antes
é lermos leibniz conviver com os médicis
onze quilómetros ao sul de florença
sobre restos de inquietação visível em bilhetes de eléctrico
Há quanto tempo se põe o sol em espinho?
Terão visto este sol os liberais no mar
ou antero junto da ermida?
O sol que aqui se põe onde nasce? A quem
passamos este sol? Quem se levanta onde nos deitamos?
O pôr-do-sol em espinho é termos sido felizes
é sentir como o nosso braço esquerdo
Ou melhor: é não haver mais nada nem ninguém
mulheres recortadas nas vidraças
oliveiras à chuva homens a trabalhar
coisas todas as coisas deixadas a si mesmas
Não mais restos de vozes solidão dos vidros
não mais os homens coisas que pensam coisas sozinhas
não mais o pôr-do-sol apenas pôr-do-sol

Ruy Belo, Homem de Palavra[s], Ed, Presença

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Il Cor Computo


Esgotos, esgotos. Esgotos e excrementos.

Revirados pela
dança dos dedos dos pés,
moldados por toda
a luxúria do barro em teu redor, por toda
a sua zelosa
saliva e suor:

ainda, ainda,
ainda e sempre
o mesmo - um cálice - :
e assim o êxtase faz a sua ronda,
a sua ronda, a ronda.

Bebam, bocas, bebam!
A quem se destina o fogo liquefeito?
Sorvido on the rocks, on the rocks.
É ela quem traz as borras e o fim.

Paul Célan, A Morte é uma flor, Ed, Cotovia

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O Homem sem Qualidades



Quando acordou, certificou-se de que os ferimentos não eram graves, e voltou a pensar no acontecimento. Uma briga deixa sempre um travo desagradável, como que de uma intimidade prematura, e Ulrich, mesmo sem pensar no facto de ter sido ele o agredido, tinha a sensação de se ter comportado de forma inconveniente. Mas, inconveniente em relação a quê? Mesmo ao lado das ruas onde, a cada trezentos passos, um polícia fareja e pune a mínima infracção à ordem, outras há que exigem tanta força de corpo e espírito como uma selva. A humanidade produz Bíblias e armas, tuberculose e tuberculina. É democrática para com os reis e a nobreza; constrói igrejas e, contra as igrejas universidades; transforma conventos em quartéis, mas nomeia capelães para esses quartéis. Naturalmente que é ela quem fornece aos vadios cassetetes de borracha cheios de chumbo para deixarem de rastos o corpo dos outros, e ainda por cima oferece ao corpo solitário e maltratado edredons de penas como aquele que agora envolvia Ulrich, como se estivesse recheado só de respeito e delicadeza. É a famosa história das contradições, da inconsequência e da imperfeição da vida. Perante isso, ou rimos ou suspiramos. (...)


Robert Musil, O Homem sem Qualidades, Pub. D. Quixote, I vol.