sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O Homem sem Qualidades



Quando acordou, certificou-se de que os ferimentos não eram graves, e voltou a pensar no acontecimento. Uma briga deixa sempre um travo desagradável, como que de uma intimidade prematura, e Ulrich, mesmo sem pensar no facto de ter sido ele o agredido, tinha a sensação de se ter comportado de forma inconveniente. Mas, inconveniente em relação a quê? Mesmo ao lado das ruas onde, a cada trezentos passos, um polícia fareja e pune a mínima infracção à ordem, outras há que exigem tanta força de corpo e espírito como uma selva. A humanidade produz Bíblias e armas, tuberculose e tuberculina. É democrática para com os reis e a nobreza; constrói igrejas e, contra as igrejas universidades; transforma conventos em quartéis, mas nomeia capelães para esses quartéis. Naturalmente que é ela quem fornece aos vadios cassetetes de borracha cheios de chumbo para deixarem de rastos o corpo dos outros, e ainda por cima oferece ao corpo solitário e maltratado edredons de penas como aquele que agora envolvia Ulrich, como se estivesse recheado só de respeito e delicadeza. É a famosa história das contradições, da inconsequência e da imperfeição da vida. Perante isso, ou rimos ou suspiramos. (...)


Robert Musil, O Homem sem Qualidades, Pub. D. Quixote, I vol.

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